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ALDEADOS NAS POLÍTICAS DE CONTROLE E HOMOGENEIZAÇÃO DO ESTADO CIVIL-MILITAR

No contexto de uma realidade polarizada, a vacinação dos Akroá-Gamella, Tremembé da Raposa e Tremembé do Engenho, no estado do Maranhão, pode ser considerada um processo vitorioso na quebra de braço com o governo federal. Isso porque já não bastasse todo o histórico de desterritorializações e conflitos violentos que marcam a existência desses povos, eles agora se deparam com o retorno de um antigo debate sobre os “critérios de indianidade” estabelecido pelo indigenismo oficial. A contenda atual se instaura em virtude de planos e deliberações das políticas indigenistas postas em prática pelo governo federal, sobretudo desde o lançamento do Plano Nacional de Imunização (PNI)[1], em que se estabelece a categoria de “indígena aldeado em terras demarcadas aldeada”, e a publicação da Resolução n. 4/2021 da FUNAI, em que se cria critérios jurídicos para saber quem é ou não é indígena.[2]

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Como era de se esperar, os movimentos indígenas, por meio de suas associações e de seus apoiadores, criticaram veementemente tanto a categoria de “índios aldeados”, quanto o fato de o governo federal mais uma vez intervir de maneira deliberada impondo “critérios de indianidade”, a despeito das disposições legais vigentes, como a Constituição Federal de 1988 e de Convenções Internacionais das quais o Brasil é signatário, em especial a Convenção 169 da OIT. O secretário Francisco Gonçalves, da Secretaria de Estado dos Direitos Humanos e Participação Popular - SEDIHPOP, também se manifestou em coluna publicada por um jornal de grande circulação do estado do Maranhão, contestando os critérios adotados pelo PNI.[3] Mais recentemente, o ministro do STF, Luís Roberto Barroso, deliberou sobre a matéria assegurando o direito dos indígenas que vivem em cidades e territórios não demarcados e homologados serem vacinados como grupos prioritários. Tal decisão reconhece que a quarta versão do Plano Geral de Enfrentamento à COVID-19 para Povos Indígenas, permanece genérico e sem elementos técnicos suficientes, demonstrando “profunda desarticulação por parte dos órgãos envolvidos” e, por sua vez, a ineficiência do governo federal em estabelecer medidas concretas e articuladas de enfrentamento à pandemia.[4]

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A decisão também chama atenção para a inconstitucionalidade da Resolução n. 4/2021 e da “insistência” da FUNAI em estabelecer critérios de distinção entre indígenas, afirmando ainda a inconvencionalidade e violação a medidas cautelares já estabelecidas pelo STF no que diz respeito ao critério fundamental para o reconhecimento dos povos indígenas que é a autodeclaração.

Entendemos que para compreender melhor o lastro do que se está chamando de “aldeados” e seus interesses, bem como da insistência em se adotar “critérios de indianidade”, a qual alerta o ministro Barroso, é preciso retomá-los historicamente percebendo-os como modelo de ação e gestão populacional do Estado brasileiro. Não é de hoje que a pergunta sobre quem é ou não é “índio” é feita. Desde a invasão europeia nas Américas questões de cunho administrativo-político-legal-religioso procuraram dar significado à existência indígena. A primeira grande questão para a política colonial portuguesa era saber se os indígenas tinham ou não alma, se eram ou não humanos, se eram ou não aptos para o trabalho, se eram ou não capazes de responderem pelos seus atos.

A resposta veio por meio da instituição dos aldeamentos. Se perguntássemos a qualquer brasileiro pela rua a que esse termo se refere, possivelmente não teríamos uma margem estatística que fugisse à ligação dele com os indígenas. O termo aldeia está intrinsecamente ligado no Brasil às populações indígenas. Isso parece claro em razão de um modelo de ação praticada desde as primeiras missões católicas nas Américas no século XVI. O aldeamento foi uma prática instituída pelos jesuítas para catequizar os indígenas, controlar os territórios de interesse da Coroa e inserir os indígenas no sistema de trabalho servil. Controlar as almas e os corpos indígenas foi o ideal perseguido desde o período colonial. Colonos e jesuítas disputaram pelo controle da mão-de-obra indígena disponível nos aldeamentos. Contudo, não tardou os anseios em promover o aniquilamento dos aldeamentos, consequentemente dos indígenas para ocupar as terras onde viviam.

Passados alguns séculos e confirmado a espoliação e ocupação dos territórios indígenas, o período republicano - principalmente com a criação do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), em 1910 - consolidou políticas a partir da consideração de que o ser indígena era uma condição transitória. Bastava trazê-los harmoniosamente ao convívio com a “civilização”, adotar práticas educacionais e laborais para que assim pudessem ser assimilados gradativamente à sociedade “brasileira”, tornando-os então integrados, isto é, cidadãos brasileiros.

Destituídos juridicamente de capacidade plena, coube ao Estado fazer o governo dos indígenas, dizer como e onde morar, quais as terras a ocupar e o que podem ou não fazer nesses territórios. Posse e tutela passaram a convergir no enquadramento legal das políticas indigenistas. Todavia, como os indígenas não deixaram de existir, tal qual se supunha e se planejava, a questão sobre direitos específicos e diferenciados ao conjunto da população se aflorou em razão da organização dos movimentos indígenas no período da redemocratização. Também cresceram as tentativas do órgão indigenista oficial em se livrar de indígenas indesejáveis, quais sejam, aqueles que o Estado não reconheceu sua “condição indígena”, ou aqueles cuja a administração do Estado lava suas mãos pelo fato dos indígenas não permanecerem dentro dos limites estabelecidos pelos atos administrativos de demarcação e homologação das terras indígenas.

É bem verdade que o reconhecimento sobre os direitos indígenas – entre eles os territoriais, que enfeixam as ações de Estado - sempre foram pautas extremamente indigestas para os governos republicanos. Contudo, os momentos mais incômodos em aceitar a existência das diferenças indígenas e seus processos históricos específicos de territorialização foram certamente aqueles marcados pelos regimes civil-militar de acentuado caráter nacionalista. Foi especialmente durante esses mandatos que a questão de ser ou não indígena assumiu contornos mais críticos e debates mais calorosos. O ideal de construção de um Estado-nação, forte político-economicamente e homogêneo culturalmente, os impulsionara à marcha de ocupação efetiva de todo o território nacional, desconsiderando toda a sociobiodiversidade existente.

Sem dúvidas foi durante a ditadura civil-militar (1964-1984) que as teorias de aculturação muito em voga entre os sociólogos e antropólogos dos anos de 1940 a 1960 – muitos deles trabalhavam na formulação de políticas públicas e, consequentemente, na formulação da política indigenista -, tiveram leituras próprias e ganharam força no plano ideológico dos governos ditatoriais. Com isso, alteraram o próprio estatuto da aculturação. A preocupação, em grande medida, por parte dos pesquisadores recaía sobre a preocupação de que os indígenas poderiam ser extintos em curto espaço de tempo, visto o acelerado processo de mudanças sociais, culturais e ambientais que estavam ocorrendo no período. Já as intenções de avaliar os graus de aculturação dos indígenas por parte das gestões da Funai, cujos cargos de presidência e direção eram ocupados por militares, era distinta.

O general Carlos Nobre da Veiga, presidente da Funai (1979-1981), incrementou o projeto de emancipação compulsória, que vinha sendo articulado pelo Ministro do Interior do presidente Geisel, Maurício Rangel Reis, criando os famosos “critérios de indianidade” e, dessa forma, declarou que “o índio [estaria] emancipado em cinco gerações”. O presidente subsequente, general Paulo Moreira Leal (1981-1983), encomendou estudos a funcionários do órgão, visando a emancipação dos Guarani (da região sul do país) e Tembé (PA/MA), com base em “critérios de indianidade”. Posteriormente, Romero Jucá (1986- 1988), em maio de 1988, assinou portaria criando um GT para avaliar o grau de aculturação dos indígenas, pensando em liberar territórios tradicionais para a exploração minerária.

A ideia de emancipação estava apoiada num claro interesse político e econômico de promover a invasão oficial nos territórios tradicionais indígenas, incorporando-os – no sentido, físico e ideológico - ao território brasileiro por meio de abertura de estradas, de construção de hidrelétricas, bem como de instaurar a abertura de processos minerários. Por trás da retórica de “integrar” os indígenas estava a de “entregar” as terras indígenas aos grandes projetos e grandes empresas privadas. Outrossim, consolidar a emancipação dos indígenas significaria garantir a assimilação destes ao “mundo dos brancos”, e, assim, destruí-los de direitos específicos e diferenciados.

Desvinculá-los da tutela do Estado nada tinha a ver, portanto, com dar autonomia aos supostos emancipados. O que se pretendia era colocá-los à margem da lei. O instrumento jurídico de defesa da população indígena à época era a Lei 6.001, de 11 de novembro de 1973, conhecida como Estatuto do Índio. Hoje, após a quebra da tutela pela Constituição Federal de 1988, a investida é contra a própria Carta Magna e outros dispositivos legais que garantem aos povos indígenas, independentemente de seu processo histórico, os seus direitos coletivos enquanto povos originários e autônomos para defender seus direitos.

O Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação contra a Covid-19 ao fazer a distinção entre indígenas aldeados e não aldeados, bem como a Portaria da Funai ao estabelecer “critérios de indianidade”, evidencia o projeto do governo federal em promover a exclusão de políticas públicas voltadas aos povos indígenas.    

Dessa forma, retomamos o fio condutor inicial acerca da vacinação dos povos Akroá-Gamella, Tremembé da Raposa e Tremembé do Engenho, no estado do Maranhão, caracterizados a partir da categoria de “não aldeados”. Ainda em 2020, eles haviam denunciado a recusa, por parte do Distrito Sanitário Especial Indígena no Maranhão (DSEI/MA), em prestar atendimento específico e diferenciado no tratamento contra a Covid-19, sob a justificativa do cumprimento dos “critérios de indianidade” e a alegação de que os mesmos deveriam ser atendidos pelo SUS dos municípios onde encontram-se localizados. Ainda em 2020, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, em uma ação histórica, que a SESAI deveria estender os serviços do Subsistema Indígena de Saúde aos povos aldeados situados em terras não homologadas e aos povos indígenas não aldeados (STF, 2020)[5].

No dia 25 de janeiro de 2021, os Akroá Gamella e os Tremembé (da Raposa e do Engenho), juntamente com os Anapuru Muypurá, os Kariri e os Tupinambá, povos localizados no estado do Maranhão e que estão em processo de retomada de seus territórios, redigiram a Carta Aberta[6] denunciando a exclusão dos mesmos no Plano Nacional de Vacinação contra a Covid-19, argumentando que “são duplamente violentados e penalizados” e que “o plano deixou de fora os indígenas que vivem nos centros urbanos, os quais, segundo dados do Censo do IBGE de 2010, são cerca de 46% da população indígena no Brasil”.

Após a Carta Aberta dos povos, a SEDIHPOP manifestou-se através de uma Nota[7] publicada em 03 de fevereiro de 2021, garantindo que os Gamellas já estavam incluídos no PNI e que, pelas mesmas razões, o Governo do Estado, por meio da SEDIHPOP, e a COEPI defendem a inclusão dos Tremembé, dos municípios de Raposa e São José de Ribamar. A SEDIHPOP garantiu em nota que tanto os Tremembé quanto os Akroá Gamella haviam iniciado processo de imunização, além de reforçar a atuação da Força Estadual de Saúde do Maranhão (FESMA) para atuar junto ao DSEI no processo de vacinação dos indígenas. Manifestou-se, ainda, favorável ao diálogo com os povos Kariri, Anapuru Muypurá e Tupinambá para garantir a vacinação dos mesmos,  além do diálogo com movimentos sociais, representantes do CIMI e da CNBB e demais interessados. A Rede (CO)VIDA, a convite dos próprios indígenas, acompanhou uma reunião online em 02 de março de 2021, com lideranças desses povos e representantes da SEDIHPOP, FUNAI e DSEI/MA, cuja pauta versava sobre a continuidade do plano de vacinação.

 

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A construção do direito à vacinação desses povos, no diálogo com o governo do estado, via SEDIHPOP, pode ser considerada não só uma vitória na quebra de braço com o governo federal, conforme apontamos no início do texto, como possibilidades de ampliação do poder público no atendimento às questões indígenas. Essa dinâmica corrobora, ainda, com os esforços empreendidos pelas organizações políticas desses povos no processo de luta pela garantia e retomada de seus territórios, pelo reconhecimento de serem povos originários e, consequentemente, pela garantia de políticas públicas diferenciadas (neste caso, políticas de saúde). Portanto, desconstruindo a lógica dos “critérios de indianidade” sustentada pelo governo federal.

O cenário pandêmico tem revelado inseguranças, desorientações e incertezas em todos os planos da vida social. No que compete a leitura da Rede (CO)VIDA, lançamos luz sobre um antigo ideal de integração dos povos indígenas à comunidade nacional e de como esse ideal é recuperado pelo governo federal com o objetivo, mais uma vez, de forjar no plano nacional a ideia de que não há a necessidade de direitos diferenciados aos povos indígenas como estabelecido pela Constituição. O que está em jogo no bolsonarismo é afirmar que os indígenas são juridicamente iguais ao “branco” e, que, para tanto, possuem os mesmos direitos e deveres do conjunto da população. Sendo assim, não possuem direitos diferenciados, sejam territoriais, sejam de saúde e/ou educação. Podem os indígenas tornar sua terra propriedade privada e, assim, vendê-las aos interesses do mercado financeiro das commodities; podem seguir a fila da vacinação, sem acesso à saúde especial e serem vacinados daqui a três, quatros anos; ou ainda se aterem somente ao beneplácito do “deus” cristão, que tanto fez por eles durante os séculos de colonização, para que não virem jacaré.

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